Família de desembargador formaliza interesse em adotar ‘filha afetiva’
Investigação aponta que era empregada e vivia situação análoga à escravidão.
O desembargador do TJSC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) Jorge Luiz de Borba e sua mulher, Ana Cristina Gayotto de Borba, assinaram na segunda-feira (12) um documento em que manifestam a intenção de adoção de Sônia Maria de Jesus.
O casal está sendo acusado de manter Sônia, de 50 anos, que é surda-muda, em condições análogas à escravidão há mais de três décadas.
A família nega a acusação e, para não haver contestação futura em relação à divisão da herança a qual Sônia teria direito, caso seja mesmo adotada pela família Borba, os quatro filhos de Jorge e Ana Cristina entrarão com anuência no processo.
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Sônia foi retirada na sexta-feira passada do convívio com a família Borba, em Florianópolis, e acolhida em uma entidade que presta assistência social e psicológica. A reportagem tentou ouvir o desembargador, porém a assessoria de imprensa informou que, como a investigação corre em segredo de justiça, ele não vai conceder entrevistas.
A família garante que Sônia não era tratada como empregada. Em nota, o casal e os filhos, Maria Leonor, Maria Alice, Maria Julia e Jorge Luiz, disseram que se surpreenderam com a acusação e que “jamais praticaram ou tolerariam que fosse praticada tal conduta, ainda mais contra quem sempre trataram como membro da família”.
Também afirmam que “acatarão todas as sugestões emanadas do poder público, além das que a família já tem adotado ao longo da vida, para beneficiar o desenvolvimento de Sônia” e que “pretendem colaborar com todas as instâncias administrativas e judiciais, seja para que não remanesçam dúvidas sobre a situação de fato existente em relação à Sônia, seja para que as investigações avancem com brevidade a fim de permitir a retomada da convivência familiar”.
O TJSC também se manifestou por nota informando que o “desembargador Jorge Borba compareceu, na quarta-feira (7), à sessão do órgão especial do Tribunal de Justiça e prestou os esclarecimentos devidos aos seus pares, reiterando o asseverado por ele, em nota pública, no sentido de que Sônia foi acolhida por sua família, com tenra idade, há mais de 30 anos”.
O TJ informou também que a “apuração dos fatos, no entanto, por força de disposição constitucional, cabe ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) e ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça)”.
Investigação apura que Sônia nunca recebeu educação formal
A operação que resultou no resgate de Sônia foi deflagrada na terça-feira da semana passada, após denúncia recebida pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) em novembro de 2022. Ao longo dos últimos meses, testemunhas foram ouvidas e o MPF (Ministério Público Federal) obteve mandados judiciais do STJ para fiscalizar a casa da família Borba.
Segundo o apurado, Sônia, hoje com 50 anos, vivia num abrigo de crianças de São Paulo quando foi retirada do local pela sogra do desembargador, aos 9 anos. Quando tinha cerca de 12 anos, época em que a primeira filha dos investigados nasceu, ela foi entregue ao casal Borba e, segundo as testemunhas, passou a cuidar dos filhos do casal. Ela não teria frequentado escola.
Para o MPT, diversas circunstâncias pesam contra os investigados, como o fato de que Sônia nunca recebeu instrução formal, não aprendeu a ler e escrever e não foi alfabetizada em Libras, a Língua Brasileira de Sinais.
A investigação também apontou que apesar de a família dizer que ela era tratada como filha, diferentemente dos filhos biológicos do casal, ela só passou a ter plano de saúde, CPF, RG e título de eleitor em 2021. Antes, seu único documento era a certidão de nascimento.
Os mandados de busca e apreensão na casa do desembargador foram cumpridos por uma força-tarefa, com auditores-fiscais do trabalho vinculados ao MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), MPT (Ministério Público do Trabalho), MPF (Ministério Público Federal), DPU (Defensoria Pública da União) e PF (Polícia Federal).
Para os auditores, a fiscalização reforçou os indícios dos crimes denunciados e confirmados pelas testemunhas ouvidas no início da apuração. Conforme os relatos, a vítima fazia tarefas domésticas, como arrumar camas, passar roupas e lavar louças, sem nunca ter recebido salário nem direitos trabalhistas nestas três décadas.
As testemunhas também relataram que Sônia dormia em dependências de empregadas, tanto em Blumenau, onde o magistrado morava antes de se tornar desembargador, quanto após a mudança para Florianópolis, e que costumava fazer as refeições na cozinha, com as demais empregadas da casa.
Além da entidade que presta assistência social e psicológica, Sônia será inserida numa entidade filantrópica especializada na alfabetização e socialização de surdos.